Muito chão pela frente

Ganhando terreno em um ambiente dominado há décadas pelos homens, as mulheres do agro vêm arregaçando as mangas e assumindo a gestão das propriedades rurais. Segundo levantamento realizado por Ministério da Agricultura, Embrapa e IBGE, 19% das fazendas em atividade no país são gerenciadas por mulheres, 947 mil de um universo de 5,07 milhões de propriedades rurais. A estatística inclui aquelas que se dedicam aos números, mas também as que encontraram espaço para estar na lida nas mangueiras, ambiente que, há poucos anos, era exclusivo dos homens. Na Associação Brasileira de Angus, a situação é parecida. Levantamento realizado em novembro de 2021 indica que apenas 11,9% das propriedades associadas estão registradas em nome de mulheres.

No entanto, apesar de já terem conquistado muito, elas ainda têm muito chão para percorrer pela frente. Como é o caso de Liliane Queiroz, produtora de Angus em Unaí (MG). No início de sua carreira, presenciou situações em que homens se recusaram a fazer negócio pelo fato de ela ser mulher. Por gostar de fazer uma seleção criteriosa dos animais antes de comprá-los, Liliane chegou a ser conhecida pelos pecuaristas da região como uma profissional inconveniente. “Aí o pessoal começou a me chamar de ‘esperta’, ou dizia: ‘Ah, lá vem aquela mulher chata que não gosta de boi de tal e de tal forma’. É que a pessoa pensa que a gente não entende de gado.”

A fim de valorizar o trabalho de mulheres como Liliane, em 2021, a Angus desafiou profissionais que ocupam diferentes posições na pecuária na série #OCampoÉDelas. A iniciativa foi realizada ao longo da semana do Dia da Mulher, em março, e movimentou as redes sociais da entidade com os relatos delas. Conheça algumas histórias de criadoras que estão à frente de propriedades Angus espalhadas pelo país e, com o pulso firme, vêm mostrando que a força da Angus também é delas.

A Dama do Agro

Ao presentear a nora e a esposa com 35 cabeças de gado, o empresário Fábio Queiroz deu um “empurrãozinho” para que Liliane Queiroz se tornasse uma grande criadora. Hoje, mais de duas décadas depois, a Fazenda São José, de Unaí (MG), tem capacidade para mil cabeças e se tornou a grande paixão da “Dama do Agro”, como é conhecida a pecuarista na região. “Meu sogro via toda minha conexão com os animais, via que eu tinha potencial e resolveu fazer alguma coisa para eu deslanchar. Foi mais visionário que eu”, destacou Liliane.

Devido ao clima da região, Liliane começou a trabalhar com recria e engorda de zebuínos. Com o objetivo de potencializar a produção e agregar valor, a pecuarista optou, em 2012, pela recria de animais F1 Angus e tornou o “Projeto das Precocinhas” sua grande paixão. Ela compra os animais na desmama, insemina as fêmeas, que são comercializadas prenhas, e, em parceria com o sogro, encaminha os machos para o cocho.

Além da Fazenda São José, ela administra, ao lado do marido Fabiano Queiroz, a Fazenda Primavera, que produz leguminosas. “Agricultura é para o bolso, e a pecuária, para o coração. O meu marido brinca comigo que eu consigo perceber se tem animal mancando até se ele estiver deitado”, afirma. Ao longo dos anos, Liliane relata ter passado por diversas situações de pre-conceito, até por parte de outras mulheres. Hoje, no entanto, a “Dama do Agro”, apelido dado por um dos pisteiros da Unaí Leilões em 2019, é figurinha carimbada no município. “Quero que os meus filhos batam no peito e digam: ‘Essa foi a minha mãe, ela é um exemplo de mulher’”, reforça a criadora.

Crédito: Thiago Bianco Queiroz

Pecuária em números

Após anos trabalhando na propriedade da família, Júlia Cestari Pierucci resolveu dar uma pausa na lida. Com o objetivo de agregar novos conhecimentos, decidiu deixar o posto que ocupava na Fazenda Jequitibá da São Luiz, em Rancharia (SP), em março de 2021, para se dedicar à atuação como técnica em uma empresa de assessoria rural, a Terra Desenvolvimento Agropecuário. Foi a procura pela excelência da carne que motivou a pecuarista a buscar novas formas de agregar conhecimento. “Na pecuária tudo é muito lindo, mas a gente tem que ganhar dinheiro, né? O nosso produto é a carne. Não adianta a produção ser ótima, perfeita, se não soubermos gerir tudo muito bem”.

Antes de se voltar aos números, a profissional trabalhava na fazenda da família, onde era responsável pelas demandas operacionais e veterinárias ao lado dos pais. O processo, contudo, não foi fácil no começo, principalmente porque, como a equipe da fazenda era composta somente por homens, muitos duvidavam do seu trabalho. “No início não me respeitavam muito, me viam como uma porcelana”. Na propriedade, a família trabalha com a cria e recria de animais meio sangue Angus.

Com o passar do tempo, Júlia foi adquirindo a confiança dos colaboradores. “A gente vai conquistando es-paço, insistindo, mostrando que conseguimos sujar as mãos, fazer as coisas. E é realmente aos poucos, com algumas atitudes, que a gente vai ganhando a confiança e mostrando que é capaz também”. O êxito foi tanto que, hoje, mesmo não trabalhando mais na propriedade, os funcionários ligam para contar as novidades. A pecuarista não descarta voltar à Fazenda Jequitibá, mas sabe que ainda tem muito a fazer na assessora técnica.

Tradição de família

Criada em uma família tradicional de produtores de gado, ovinos e de equinos no Rio Grande do Sul, Mariana Tellechea é uma dessas mulheres que tomaram as rédeas da propriedade. Seu amor pela lida do campo se concretizou quando, aos 12 anos, ganhou sua primeira vaca Red Angus. “A partir daí, comecei a gostar de cuidar do gado”, conta a médica veterinária. Mas foi com a morte do pai Flávio Tellechea e do irmão Flávio Antônio Tellechea que se viu desafiada a seguir com o legado da tradicional Cabanha Paineiras, de Uruguaiana (RS). “A seleção genética dos animais era uma jóia, a gente tinha que seguir. Não podíamos deixar a coisa morrer”.

Liderar uma propriedade rural nos anos 90 sendo jovem, mulher e com dois filhos pequenos não foi uma missão fácil, mas valeu a pena. A administração da pecuarista não somente deu sequência à tradição dos Tellechea como conseguiu ampliá-la. Na época que o patriarca administrava os negócios, a transferência de embriões apenas estava começando. Com o avanço da tecnologia, Mariana investiu em práticas que turbinaram a produtividade dos animais, como o aperfeiçoamento genético, de pastagens e nutrição, além de ganhos consistentes nos índices de desmama e de prenhez.

Em 2009, Mariana decidiu se dedicar a um projeto solo: a Cabanha Basca. O empreendimento começou através da sua parte da herança e, aos poucos, a pecuarista começou a incorporar novas áreas na região. “É muito bom trabalhar com a família, mas eu quis começar a tocar da minha maneira os negócios”, explica a criadora, que atualmente administra a propriedade ao lado da filha Lilinha Tellechea e do genro Henrique Gonzalez.

Crédito: Nelson Pinto

Do campo à mesa

Para que a mãe não vendesse a propriedade, que na época ela administrava sozinha, a publicitária Andressa Biata resolveu deixar a vida badalada de Campinas (SP) para se dedicar aos negócios da família no interior do Mato Grosso do Sul. Uma decisão que não foi nada fácil, mas da qual hoje colhe frutos. “Eu tive de sair da zona de conforto para assumir algo totalmente novo”, conta Andressa, que hoje comanda a Fazenda São João do Pontal, de Alcinópolis (MS).

Crédito: Rafael Rezende

A trajetória das mulheres da família Albertoni, no entanto, está longe de ter sido “um mar de rosas”. Dona Lucinéia, mãe de Andressa, foi bastante desacreditada quando precisou assumir a gestão da fazenda em 2008. Na época, muitos parentes e vizinhos diziam que ela não seria capaz de continuar com os negócios. “Realmente desacreditaram o potencial dela de gerir uma fazenda, e ela sofreu bastante com isso. Mas não deixou a peteca cair e tocou o negócio durante todo esse tempo”, revela Andressa, ressaltando que a mãe não só deu continuidade ao empreendimento, como também o ampliou.

A fim de conciliar a vida urbana e a rural, Andressa encontrou na internet um espaço para poder compartilhar a sua rotina e experiências. “Elas (redes sociais) são a minha portinha para o mundo, sem elas minha transição não teria sido fácil.” O trabalho como agroimpulsionadora (@abiata) já lhe rendeu algumas parcerias. Desde 2019, por exemplo, atua como Embaixadora da Agrishow.

Andressa procura estimular que mais mulheres participem do trabalho no campo. Segundo ela, não é porque a profissional ajuda só no financeiro ou que vai à propriedade apenas aos finais de semana que deve se sentir como uma personagem secundária: “Ela tem de vestir essa camisa de mulher do agro e se sentir bem com isso.

História de pioneirismo

Uma das primeiras mulheres a as-sumir o comando de uma propriedade de Angus, Carla Sandra Staiger Schneider teve de superar diversos desafios para chegar aonde almejava. Uma trajetória que começou quando o pai, o metalúrgico alemão Carlos Staiger, vendeu a então propriedade da família em Camaquã (RS) e adquiriu uma fazenda em São Jerônimo (RS), onde atualmente está localizada a Cabanha Santa Bárbara.

Para seguir o ofício e tocar o empreendimento, Carla precisava se especializar. Com o incentivo do pai, a jovem de 17 anos embarcou rumo a uma das experiências mais transformadoras da sua vida: a Alemanha. Lá a criadora fez curso superior em Administração com ênfase em agronegócios. Além disso, a experiência foi fundamental para mostrar à jovem que ela poderia fazer o que quisesse, já que sua turma era composta apenas por mulheres e todas compartilhavam da mesma vontade de deixar a sua marca em um campo dominado pelos homens. “O que mais me impressionou foi ver aquelas meninas, de vários lugares do mundo, falando de pecuária.”

Quando voltou ao Brasil, a fazenda em São Jerônimo já estava mais estruturada, e a pecuária na propriedade somente carecia de condução. Uma das primeiras iniciativas inovadoras proposta pela pecuarista foi a ida da família à Escócia, com o objetivo de adquirir animais Angus PO. Foi assim que a Cabanha Santa Bárbara iniciou o seu plantel da raça, focado no desempenho genético. Participando das maiores exposições brasileiras desde 1964, a fazenda detém inúmeros prêmios. “Hoje a mulher está bem diferente do que era antes: sabe o que quer e aonde quer chegar. Está com mais personalidade e confiança, com menos medo”, ressalta Carla, que gerencia a propriedade com a ajuda do filho Stefan Staiger Schneider.

Crédito: Arquivo Pessoal

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